Em 1982, aos 36 anos, Raul Seixas não vivia seu melhor momento ao se apresentar para 300 pessoas em Caieiras, na Grande São Paulo. Quando subiu alcoolizado no palco, o público suspeitou que não era o próprio artista que estava ali e, sim, um sósia desafinado. Sem nenhum documento que provasse o contrário, o roqueiro quase foi linchado — acabou preso e agredido pelo delegado. Ao longo dos sete anos seguintes, sua saúde, que já não era boa em razão do vício em drogas e bebida, ficou comprometida de vez. Em 21 de agosto de 1989, aos 44 anos, o músico foi achado morto no seu apartamento, em São Paulo. Na certidão de óbito, a causa não surpreendeu: pancreatite crônica e hipoglicemia, sequelas clássicas de alcoolismo. Mas o que chama atenção no documento é uma informação chocante: o ídolo que criou hits do rock nacional morreu sem deixar bens.

Nos oitenta anos de nascimento de Raul, que se completam no sábado 28, seu legado continua mais vivo — e lucrativo — que nunca. Para além dos famigerados gritos de “Toca Raul” pelos barzinhos de música ao vivo no Brasil afora, o culto à sua figura só cresceu após a morte, como mostram as várias homenagens que ganhará. A série Raul Seixas: Eu Sou, do Globoplay, que estreia na quinta-feira 26, recria a vida errática do artista, com Ravel Andrade no papel dele. “Raul é um personagem cheio de contradições e, ao mesmo tempo, genial: um visionário marginalizado”, diz o ator. Documentos inéditos, itens originais e fotografias, cedidos por sua ex-esposa, Kika, e pelo autointitulado fã número 1, Sylvio Passos, poderão ser vistos na exposição O Baú do Raul, a partir de 11 de julho no MIS, em São Paulo. A família e Passos organizam também, no Circo Voador, no Rio, o show O Baú do Raul. Em 2025, o já tradicional tributo anual será ampliado com participações de roqueiros como Frejat. No teatro, ao menos três peças também contarão sua história.
Goste-se ou não de hits como Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás, a resiliência de Raul é inegável. “Papai virou parte da cultura popular brasileira”, diz Vivi Seixas, 44 anos, filha caçula do artista e responsável por gerenciar sua obra, com anuência das duas meias-irmãs (todas filhas de diferentes mulheres na vida de Raul), Simone, 55, e Scarlet, 49, que vivem nos Estados Unidos (leia a entrevista). Com 324 composições registradas no Ecad, Raul mantém sua força nas rádios e no streaming. No Spotify, tem 2,5 milhões de ouvintes. Só Metamorfose Ambulante acumula 115 milhões de reproduções.

Raul é um caso peculiar de artista que se tornou depois da morte um fenômeno maior do que em vida. As músicas Maluco Beleza e Gita foram utilizadas recentemente em propagandas de duas grandes empresas, a Suzano e o Positivo — o valor para o uso de cada uma, segundo estimativas do mercado, beirou 1,5 milhão de reais. Assim como Rita Lee, Raul de fato foi um pioneiro heroico do rock nacional, forjando sua fama nos anos 1970 em meio à caretice do regime militar. É verdade que nem sempre foi original: a notória Rock das Aranhas é um plágio de Killer Diller, de Jim Breedlove, como o próprio artista confessava. Mas a aura meio messiânica e enigmática das letras compostas em parceria com o futuro “mago” Paulo Coelho resume o imaginário da era bicho-grilo — e ainda faz a cabeça de muitos fãs.
A piração das letras confundia a censura da época. Mosca na Sopa foi liberada com a justificativa de que era “inofensiva” porque não fazia o menor sentido. Os censores não tiveram a mesma benevolência, porém, com Sociedade Alternativa, cujo tema inspirado nas ideias do ocultista inglês Aleister Crowley (1875-1947) foi considerado subversivo (“Faz o que tu queres pois é tudo da lei”, diz a letra). Por causa dela, Raul e Coelho entraram na mira da repressão.

Embora amado por uma legião de fãs, Raul encontrou no álcool sua nêmesis. No fim da vida, estava tão alquebrado que subia ao palco amparado por Marcelo Nova, da banda Camisa de Vênus, com quem compôs seu último sucesso, o álbum A Panela do Diabo (1989), que chegou às lojas no dia em que ele morreu. “Antes de Raul, a música brasileira era contemplativa demais, xenófoba demais, e as letras eram quase sempre ufanistas”, diz Nova. A VEJA, Paulo Coelho, seu maior parceiro, resumiu com um de seus típicos aforismos a jornada do músico: “Raul escolheu sua vida e escolheu sua morte. Nem todo mundo tem esse privilégio”. Parafraseando a letra de Gita, o barulho do Maluco Beleza reverbera muito além do início, do fim e do meio.
“Ele não tinha medo de ser quem era”
Aos 44 anos, a filha caçula de Raul Seixas, Vivi Seixas, fala sobre a obra do pai e explica como administra seu legado ao lado das duas irmãs.

Como avalia o legado de seu pai? Raul deixou uma herança que vai além da música. Ele foi um provocador, um questionador, um artista que não tinha medo de ser quem era. Misturou ritmos, filosofias, estilos e mexeu com a cabeça de muita gente. Abriu caminho para um monte de artistas, tanto no rock quanto em outras cenas. Após 36 anos de sua morte, as músicas dele continuam vivas.
Como administra a obra de Raul? Como sou a única herdeira que vive no Brasil, o cuidado com o uso do patrimônio musical de Raul é feito principalmente por mim e minha mãe, Kika Seixas. Mas sempre com a anuência final das outras duas herdeiras, minhas irmãs Simone e Scarlet (que vivem nos Estados Unidos).
Como DJ e música, sentiu o peso de ser filha de Raul? No começo, tinha medo de acharem que eu estava na música só por ser filha do Raul. Sou DJ e produtora há 22 anos. Faço o que quero e esse foi o maior ensinamento que meu pai me deixou: seguir meu próprio caminho.
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2025, edição nº 2949
Em 1982, aos 36 anos, Raul Seixas não vivia seu melhor momento ao se apresentar para 300 pessoas em Caieiras, na Grande São Paulo. Quando subiu alcoolizado no palco, o público suspeitou que não era o próprio artista que estava ali e, sim, um sósia desafinado. Sem nenhum documento que provasse o contrário, o roqueiro quase foi linchado — acabou preso e agredido pelo delegado. Ao longo dos sete anos seguintes, sua saúde, que já não era boa em razão do vício em drogas e bebida, ficou comprometida de vez. Em 21 de agosto de 1989, aos 44 anos, o músico foi achado morto no seu apartamento, em São Paulo. Na certidão de óbito, a causa não surpreendeu: pancreatite crônica e hipoglicemia, sequelas clássicas de alcoolismo. Mas o que chama atenção no documento é uma informação chocante: o ídolo que criou hits do rock nacional morreu sem deixar bens.

Nos oitenta anos de nascimento de Raul, que se completam no sábado 28, seu legado continua mais vivo — e lucrativo — que nunca. Para além dos famigerados gritos de “Toca Raul” pelos barzinhos de música ao vivo no Brasil afora, o culto à sua figura só cresceu após a morte, como mostram as várias homenagens que ganhará. A série Raul Seixas: Eu Sou, do Globoplay, que estreia na quinta-feira 26, recria a vida errática do artista, com Ravel Andrade no papel dele. “Raul é um personagem cheio de contradições e, ao mesmo tempo, genial: um visionário marginalizado”, diz o ator. Documentos inéditos, itens originais e fotografias, cedidos por sua ex-esposa, Kika, e pelo autointitulado fã número 1, Sylvio Passos, poderão ser vistos na exposição O Baú do Raul, a partir de 11 de julho no MIS, em São Paulo. A família e Passos organizam também, no Circo Voador, no Rio, o show O Baú do Raul. Em 2025, o já tradicional tributo anual será ampliado com participações de roqueiros como Frejat. No teatro, ao menos três peças também contarão sua história.
Goste-se ou não de hits como Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás, a resiliência de Raul é inegável. “Papai virou parte da cultura popular brasileira”, diz Vivi Seixas, 44 anos, filha caçula do artista e responsável por gerenciar sua obra, com anuência das duas meias-irmãs (todas filhas de diferentes mulheres na vida de Raul), Simone, 55, e Scarlet, 49, que vivem nos Estados Unidos (leia a entrevista). Com 324 composições registradas no Ecad, Raul mantém sua força nas rádios e no streaming. No Spotify, tem 2,5 milhões de ouvintes. Só Metamorfose Ambulante acumula 115 milhões de reproduções.

Raul é um caso peculiar de artista que se tornou depois da morte um fenômeno maior do que em vida. As músicas Maluco Beleza e Gita foram utilizadas recentemente em propagandas de duas grandes empresas, a Suzano e o Positivo — o valor para o uso de cada uma, segundo estimativas do mercado, beirou 1,5 milhão de reais. Assim como Rita Lee, Raul de fato foi um pioneiro heroico do rock nacional, forjando sua fama nos anos 1970 em meio à caretice do regime militar. É verdade que nem sempre foi original: a notória Rock das Aranhas é um plágio de Killer Diller, de Jim Breedlove, como o próprio artista confessava. Mas a aura meio messiânica e enigmática das letras compostas em parceria com o futuro “mago” Paulo Coelho resume o imaginário da era bicho-grilo — e ainda faz a cabeça de muitos fãs.
A piração das letras confundia a censura da época. Mosca na Sopa foi liberada com a justificativa de que era “inofensiva” porque não fazia o menor sentido. Os censores não tiveram a mesma benevolência, porém, com Sociedade Alternativa, cujo tema inspirado nas ideias do ocultista inglês Aleister Crowley (1875-1947) foi considerado subversivo (“Faz o que tu queres pois é tudo da lei”, diz a letra). Por causa dela, Raul e Coelho entraram na mira da repressão.

Embora amado por uma legião de fãs, Raul encontrou no álcool sua nêmesis. No fim da vida, estava tão alquebrado que subia ao palco amparado por Marcelo Nova, da banda Camisa de Vênus, com quem compôs seu último sucesso, o álbum A Panela do Diabo (1989), que chegou às lojas no dia em que ele morreu. “Antes de Raul, a música brasileira era contemplativa demais, xenófoba demais, e as letras eram quase sempre ufanistas”, diz Nova. A VEJA, Paulo Coelho, seu maior parceiro, resumiu com um de seus típicos aforismos a jornada do músico: “Raul escolheu sua vida e escolheu sua morte. Nem todo mundo tem esse privilégio”. Parafraseando a letra de Gita, o barulho do Maluco Beleza reverbera muito além do início, do fim e do meio.
“Ele não tinha medo de ser quem era”
Aos 44 anos, a filha caçula de Raul Seixas, Vivi Seixas, fala sobre a obra do pai e explica como administra seu legado ao lado das duas irmãs.

Como avalia o legado de seu pai? Raul deixou uma herança que vai além da música. Ele foi um provocador, um questionador, um artista que não tinha medo de ser quem era. Misturou ritmos, filosofias, estilos e mexeu com a cabeça de muita gente. Abriu caminho para um monte de artistas, tanto no rock quanto em outras cenas. Após 36 anos de sua morte, as músicas dele continuam vivas.
Como administra a obra de Raul? Como sou a única herdeira que vive no Brasil, o cuidado com o uso do patrimônio musical de Raul é feito principalmente por mim e minha mãe, Kika Seixas. Mas sempre com a anuência final das outras duas herdeiras, minhas irmãs Simone e Scarlet (que vivem nos Estados Unidos).
Como DJ e música, sentiu o peso de ser filha de Raul? No começo, tinha medo de acharem que eu estava na música só por ser filha do Raul. Sou DJ e produtora há 22 anos. Faço o que quero e esse foi o maior ensinamento que meu pai me deixou: seguir meu próprio caminho.
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2025, edição nº 2949