Durante os séculos XV e XVI, a cidade de Florença foi palco do auge do renascimento italiano, com nomes como Leonardo da Vinci (1452-1519), Rafael (1483-1520) e Michelangelo (1475-1564) produzindo na região obras-primas tidas como símbolos supremos do período. Não foi só lá, no entanto, que a arte renascentista se desenvolveu: na mesma época, Veneza fincou sobre as águas as colunas de sua própria escola artística, que floresceu com Paolo Veronese (1528-1588) como um de seus principais expoentes. Apontado por especialistas como um colorista supremo, o artista acaba de ganhar uma exposição magistral no Museu do Prado, na Espanha, que reúne mais de 100 obras vindas da ampla coleção da instituição e de diversos museus cultuados no mundo. Com peças como a opulenta Cristo entre os Doutores no Templo, com mais de 4 metros de largura e 2,3 de altura, a mostra ilustra como o pintor ajudou a moldar o estilo veneziano que inspirou artistas como El Greco (1541-1614), Rubens (1577-1640), Velázquez (1599-1660) e Cézanne (1839-1906). “Ele é uma peça fundamental no desenvolvimento da concepção de pintura que surgiu em Veneza e prioriza a cor em detrimento do desenho”, explica o catálogo da exposição, nomeando Ticiano e Tintoretto como outros representantes do movimento.
Nascido em Verona em 1528, Paolo chegou a Veneza em 1551, aos 23 anos, e ficou por lá até a sua morte, aos 60. Nesse período, a cidade que era a terceira mais populosa da Europa, e até então vivia o auge de sua influência, exibia os primeiros sinais de estagnação econômica e declínio político e social. Nesse contexto, Veronese desempenhou um papel que vai além da arte: fortaleceu, com suas pinceladas coloridas de alto contraste e composições luxuosas, o mito da prosperidade veneziana, que estava sendo construído para dar à cidade a imagem de oásis romântico que perdura até hoje. Não à toa, seus retratos pintam uma metrópole cosmopolita, orgulhosa de seu comércio e seus produtos manufaturados. “Suas representações de Veneza não são retratos fiéis da realidade, mas testemunhos visuais eloquentes da imagem que as classes dominantes desejavam projetar”, explica a curadoria da mostra. Com essa abordagem, Veronese caiu no gosto da elite da época e seguiu atraindo a admiração de príncipes, colecionadores e figuras abastadas mesmo após sua morte. Séculos depois, o estilo que o fez despontar como um dos principais pintores de sua época acabou por ofuscar seus feitos artísticos: isso porque a arte vista como representação de luxo e opulência perdeu espaço a partir do século XX, quando o trato de mazelas sociais ganhava cada vez mais espaço nas telas. Não ajudou o fato de que sua vida, ao contrário da de colegas de renascimento, como Da Vinci ou Michelangelo, não conta com grandes polêmicas ou escândalos para instigar a curiosidade para além da tinta e do pincel, fazendo com que o artista, muitas vezes, acabe esquecido ou menosprezado.

A reunião de preciosidades do Prado, no entanto, revive a vivacidade de Veronese em toda a sua complexidade: além da Veneza mística, o artista é conhecido por sua visão suntuosa de momentos bíblicos ou mitológicos — não à toa, as Bodas de Caná, ilustração do momento em que Jesus transforma água em vinho, divide espaço com a Mona Lisa no Louvre, ocupando uma parede inteira da sala. No Prado, obras como Vênus e Adônis e Marte e Vênus ganham destaque, expondo o teor místico do pintor, que fez o barroco Marco Boschini (1613-1681) atestar, em 1660, que a arte de Veronese não é pintura, e sim magia, “que enfeitiça quem a vê”. Um elogio e tanto para o mestre das cores.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947