Em nova coluna, Rosa Moraes faz um roteiro afetivo e gastronômico pela capital gaúcha e encontra uma cidade acolhedora, resiliente e cheia de novos sabores Pouco mais de um ano após a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, fico feliz de voltar a Porto Alegre e ver que a alma da cidade é inabalável. Na resiliência de seu povo, a capital gaúcha se revela ainda mais acolhedora, orgulhosa de sua herança cultural, unida e cheia de encantos. Minha última passagem por lá foi uma (re)descoberta de alguns deles – e fiz essa jornada guiada por um casal local que não poderia ser melhor companhia, à mesa e cidade afora. Estou me referindo ao chef Marcelo Schambeck e à jornalista Flavia Mu, que me levaram a um passeio pela Porto Alegre “deles” – uma Porto Alegre que celebra momentos em família, experiências de troca, mergulhos intelectuais e uma gastronomia cada vez mais fortalecida e confiante de si mesma.
Capincho
Roberta Gewehr/Divulgação
Ao lado do mixologista Fred Muller, Marcelo e Flavia são sócios do Capincho, onde vamos nos acomodar antes de bater perna por aí. Instalado em um casarão da década de 1930, com móveis de madeira e paredes de tijolos aparentes cobertas de obras de artistas locais, o restaurante faz uma ode à cozinha sulista e ao bioma do pampa. Não é lugar de carreteiro de charque ou galeto. Aqui, a produção das famílias da agricultura agroecológica serve de ponto de partida para um cardápio que celebra a “estética do frio”.
Costela do dianteiro, 16h de cocção, finalizada com molho de carne
Marcelo Schambeck/ Divulgação
Marcelo explica que o conceito é do músico pelotense Vitor Ramil, que define: “Somos a confluência de três culturas, encontro de frialdade e tropicalidade. Qual é a base da nossa criação e da nossa identidade se não essa? Não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história”. E é na busca dessa identidade muito própria do sul brasileiro que o chef traz para suas receitas ingredientes preciosos como a macela, o coquinho do butiá, a carqueja, o caranguejo vermelho e as algas dos projetos de pesquisa universitária da região, entre outros.
Caqui, coalhada de iogurte, molho de maracujá, coquinho de butiá, hortelã e manjericão
Marcelo Schambeck/ Divulgação
“A cozinha do Capincho encontrou sentido neste ‘outro centro’ a que o Vitor Ramil se refere”, ele diz. “O ingrediente brasileiro do sul do Brasil não será igual ao ingrediente brasileiro do norte, nordeste ou sudeste, mas também tem potência, autenticidade, originalidade. Somos cozinha brasileira, mas diferente.” E é uma leitura de sul que fica evidente no cardápio criativo, moderno e dinâmico da casa. Empanada de siri e milho crioulo com salsa de tomate fresco, crocante de polenta com camarão, creme de milho, glacé de frango e bottarga de Tramandaí e a deliciosa pururuca de cogumelo com creme de pinhão, coquinho de butiá, vinagrete de eryngui, manjerona e pó de hiratake são alguns bons exemplos do que sai dessa “cozinha de bioma” – lembrando que o Rio Grande do Sul é o único estado do país a se pousar sobre o pampa.
Chef Marcelo Schambeck
Roberta Gewehr/Divulgação
Flavia Mu
Roberta Gewehr/Divulgação
No segundo andar do restaurante, a experiência da localidade se repete, agora na forma de coquetéis. Sob a batuta de Fred, desfilam sobre um grande balcão drinks como o Butiazinho, que leva cachaça, butiá, limão tahiti e açúcar, e o aromático Patagônico, de gim infusionado com pêra e mirtilo, limão siciliano, mel e spray de eucalipto. A proposta de valorizar fornecedores do sul se reflete ainda na carta de vinhos, que nos leva a uma viagem entre Serra Gaúcha, Argentina e Uruguai – países que, segundo Marcelo, perceptivelmente vivem “a mesma estação” que nossos estados do sul.
Fred Muller
Roberta Gewehr/Divulgação
Tortéi Burro e Sálvia: massa recheada servida com manteiga e sálvia. Acompanha drink com xarope de chá e abóbora com especiarias, limão-siciliano, mel, soda e finalização com spray de eucalipto
Marcelo Schambeck/ Divulgação
O cafezinho que encerra a refeição vai ser lá perto, na William & Sons Coffee Co. Entre xícaras, Marcelo e Flavia contam que a boutique transformou a relação dos porto-alegrenses com o café. Tem torrefação própria, valoriza a origem dos grãos e o trabalho dos produtores e acabou por criar esse momento do café mais gastronômico na cidade. As embalagens retratam a origem dos grãos de um jeito muito sensível, com retratos ilustrados que contam a história de quem os produz. Nessa cuidadosa curadoria da cafeteria surgem cafés especiais de gente como Rodrigo Mazzoco, de Vargem Alta (Espírito Santo), Horácio de Moura, de Simonésia, nas Matas de Minas, e Adauto Guimarães, de Patrocínio, também em Minas.
Equipe William & Sons em frente à cafeteria
Divulgação
O giro segue com uma visita à Fundação Iberê Camargo, que é um marco cultural e arquitetônico de Porto Alegre, diz Marcelo. Criado para preservar a obra do pintor gaúcho – um das principais referências nas artes plásticas brasileiras do século XX -, o impressionante prédio abriga não só o acervo dele como exposições, seminários, encontros com artistas e curadores, cursos, oficinas e uma série de atividades ligadas à arte moderna e contemporânea. À altura do acervo, a arquitetura é estonteante – o edifício é considerado um dos projetos mais importantes do arquiteto português Álvaro Siza e conquistou diversos prêmios internacionais. Uma dica para quem for no final do dia é assistir ao pôr-do-sol pelas grandes janelas voltadas para o rio Guaíba – um dos espetáculos mais belos que vi nos últimos tempos.
Fundação Iberê Camargo
Divulgação
A uma “pernadinha” de lá, chegamos ao centro – região da cidade que precisa de atenção pós-enchente, segundo meus guias. E é lá que encontramos espaços como o Farol Santander, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul e a belíssima Casa de Cultura Mário Quintana, batizada em homenagem ao famoso poeta porto-alegrense. Fazemos ainda uma parada na charmosa Livraria Baleia, ponto de encontro dos amantes de literatura, antes de visitar o Mercado Público – o mais antigo do Brasil -, com suas bancas de erva-mate, charque e mais um sem-número de produtos regionais. Para quem gosta dessa parte, por sinal, Marcelo e Flavia indicam também a Feira Agroecológica do Bom Fim, que acontece aos sábados pela manhã na Rua José Bonifácio. É uma das maiores feiras do gênero na América Latina e onde é possível encontrar e conversar com os produtores locais.
Rosa Moraes e chef Marcelo Gonçalves da Pâtissier
Divulgação
Nosso tour termina na Orla do Guaíba, renovada nos últimos anos, com um visual lindo e quadras, pista de skate e calçadão para andar de bicicleta – um espaço que os porto-alegrenses aproveitam muito, especialmente aos finais de semana. Mas antes de soltar minha mão depois dessa imersão na cidade, o casal me leva para um último lugar querido. É o Pâtissier do chef Marcelo Gonçalves, referência na gastronomia local e na vida dos dois. Misto de bistrô e confeitaria, a casa reflete o espírito de um cozinheiro apaixonado e carismático, que serve do hambúrguer ao ótimo pato confitado, com destaque especial para os doces (gente, o mil-folhas de bergamota…).
“O Marcelo é um cara que aposta na boa gastronomia de Porto Alegre muito antes de nós. Não à toa, foi nossa escolha de local para casar num domingo com feijoada, boa música e muitos amigos”, a dupla revela. E depois para o chá de fraldas do filho mais velho; para muitas comemorações de aniversários; até para o “primeiro feijãozinho” da caçula. Enquanto eles relembram toda uma história comum vivida naquelas mesas, eu sorrio. Mais que um ponto final perfeito para uma vivência tão gostosa de Porto Alegre, o Pâtissier é uma vírgula feliz, que sugere que a gente volte mais vezes a esse pedaço tão único do Brasil. Um brinde aos gaúchos e à estética do frio!
Serviço
Capincho – @capinchorestaurante
William & Sons Coffee Co – @williamsonscoffee
Fundação Iberê Camargo – @fundacaoibere
Farol Santander – @farolsantanderpoa
Museu de Arte do Rio Grande do Sul
- @museumargs
Casa de Cultura Mario Quintana – @ccmarioquintana
Livraria Baleia
- @livrariabaleia
Mercado Público de Porto Alegre – @mercadopublico_poa
Feira Ecológica do Bom Fim – @feiraecologicadobomfim
Pâtissier – @patissiermarcelogoncalves
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Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.
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