Em entrevista exclusiva à Vogue Brasil, a soprano de 25 anos fala sobre ancestralidade, desafios e a histórica conquista como a primeira mulher brasileira negra na Academia de Ópera de Paris Em setembro, Lorena Pires, cantora lírica de 25 anos, atravessa o Atlântico para ocupar um lugar histórico: será a primeira mulher brasileira negra a integrar a renomada Academia de Ópera de Paris (UAP). A trajetória dela vai além de uma conquista artística — é um marco na luta pela representatividade negra na música erudita, um universo tradicionalmente fechado e pouco acessível para vozes como a dela. A cantora capixaba, que cresceu em um contexto marcado por desafios econômicos e sociais, com raízes quilombolas que trazem em sua história ancestralidade e resistência, aprendeu cedo que o caminho exigiria mais do que talento: “A cor chega primeiro nos lugares, antes mesmo da gente abrir a boca”, reflete em conversa com Vogue Brasil, resumindo a dura realidade da discriminação estrutural no meio artístico. “As expectativas chegam dobradas para nós porque somos pretos. Sabemos como funciona na prática, mesmo com todo discurso de valorizar a competência.”
Formada recentemente em Canto Erudito, ela encerrou sua graduação no Brasil enquanto conciliava trabalhos e viagens por cidades como Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Em meio a uma rotina frenética, teve pouco tempo para preparar um dos papéis que apresentaria para a banca da Academia, a área de Micaela na ópera Carmen de Bizet, cantada em francês, língua que ainda está dominando. Mesmo assim, encarou o desafio. A banca, composta pelos diretores da Academia, o maestro, o diretor de casting e o próprio diretor da Ópera de Paris, escolheu justamente essa área que ela sentia mais insegurança para apresentar.
Sua estreia na Europa não vai ser apenas uma mudança de endereço, mas a entrada em um mundo onde poucas artistas negras brasileiras conseguiram chegar. Maria d’Apparecida, referência e inspiração para Lorena, foi a primeira brasileira a cantar na Academia de Ópera de Paris — isso aconteceu em 1965, há mais de 60 anos. A cantora descobriu a história de Maria d’Apparecida durante um trabalho acadêmico, e esse encontro mudou sua vida: “Eu vi que a vida dela foi de muita luta, enfrentou uma série de barreiras no Brasil e só conseguiu fazer carreira no exterior. Eu me vi nessa mulher guerreira.”
No ano passado, Lorena apresentou um artigo no congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (Ampom) sobre cantoras negras brasileiras, em parceria com seu professor de História da Música, Fernando Magre. O trabalho aprofundou a importância da trajetória de Maria d’Apparecida e ajudou a cantora a entender sua própria missão artística e social.
“Hoje eu entendo a representatividade como uma grande responsabilidade. Há pouco tempo, eu era quem olhava pra cantoras e cantores pretos pensando: ‘Quero chegar lá’. Maria d’Apparecida, por exemplo, como ela enfrentou tanta coisa no Brasil e seguiu sua carreira no exterior? Sempre vi nela uma guerreira. E agora, me vejo do outro lado. Recebo mensagens, encontro pessoas na rua ou na faculdade dizendo que me admiram, que sou inspiração. É surreal, porque ainda me sinto em construção, com muito a aprimorar. Mas já sou referência pra jovens artistas, e isso é uma honra — uma honra com peso. Porque junto vem o olhar atento, a expectativa. Ser alguém que mostra que é possível chegar lá, mesmo vindo de onde a gente vem, é um privilégio enorme.”
Muito embora o reconhecimento seja crescente, a cantora não esconde as dificuldades que enfrentou em seu caminho. Ela detalha o que está por trás da aparente facilidade das redes sociais: “Há três, quatro semanas, eu tava com princípio de depressão, com medo de dar tudo errado. Ninguém sabe do nosso corre, só aparece quando tá tudo muito bonito no Instagram.” A fase de transição para Paris trouxe desafios financeiros intensos. Mesmo com um contrato garantido e salário a partir de outubro, ela precisou de ajuda para bancar passagem aérea, aluguel e custos iniciais da mudança. “Eu tô indo sem patrocínio nenhum. Tudo que eu tenho é graças a pessoas que ouviram nossa história e me ajudaram voluntariamente.” A campanha na plataforma Africanize foi decisiva para movimentar a vaquinha e fazer o sonho virar realidade.
Mas Lorena vai muito além do próprio sucesso. Ela quer usar sua voz para abrir espaço para outras pessoas negras na música clássica. “Eu quero ser uma artista que dialoga com várias pessoas, de todas as faixas sociais, como, por exemplo, as profissionais de limpeza que que param para me ouvir na faculdade enquanto ensaio. Esse é o legado que eu quero.” A artista não perde de vista a responsabilidade que carrega, especialmente em um ambiente onde a representatividade ainda é escassa. “Hoje eu tenho pessoas que me mandam mensagem, falam que me admiram. Eu acho isso um privilégio muito grande, uma honra, mas também uma responsabilidade enorme.”
Lorena Pires
Vinícius Jardim/Divulgação
A inspiração vem de suas raízes afro-brasileiras e quilombolas, que atravessam gerações com histórias de luta e resistência, e do conhecimento de sua ancestralidade. Lorena tem planos futuros para trazer essa cultura para os palcos europeus, mesclando a música de concerto com elementos do canto e das tradições afro-brasileiras, um projeto que, segundo ela, só poderá sair do papel quando a agenda menos apertada permitir.
Enquanto isso, a artista segue estudando intensamente, aprimorando técnica e ganhando experiência de palco. Essa disciplina é o que a mantem firme para enfrentar os desafios de um ambiente competitivo, excludente e cheio de expectativas. Lorena acredita que sua trajetória mostra que é possível alcançar feitos inimagináveis independentemente de sua origem. É essa mensagem que a capixaba quer passar para os jovens cantores negros que, como ela, sonham em romper barreiras e conquistar seu espaço.
“Não esmoreçam, não desistam, porque não fica mais fácil com o tempo, só mais desafiador. Estudem, se capacitem. Meu pai sempre me disse: ‘O seu trabalho é estudar. Porque o estudo, ninguém tira de você.’ O que tem me sustentado é minha rede de apoio — família, amigos, e principalmente estar perto de outras pessoas pretas que também sonham e entendem o que a gente passa”, conta ela.
Além disso, Lorena reforça um cuidado essencial para pessoas negras, que vivenciam maior pressão, racismo estrutural e desigualdades que afetam o emocional: “Muita gente vê agora as coisas dando certo, mas não sabe quantos e-mails eu mandei pedindo ajuda, nem que semanas atrás eu estava à beira da depressão. As pessoas só veem o que vai parar no Instagram. O corre real, ninguém vê.”
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