Em entrevista ao g1, Valdecy Urquiza, delegado da PF, diz querer modernizar instituição. Com mais de 100 anos, organização teve no comando homens de apenas 5 países, sendo 4 da Europa e 1 dos EUA. Primeiro brasileiro a chefiar Interpol em mais de 100 anos quer modernizar organização
O maranhense Valdecy Urquiza, de 43 anos, está prestes a fazer história. Delegado da Polícia Federal, em novembro será confirmado como secretário-geral da Interpol, cargo máximo da maior organização policial do mundo, atualmente com 196 membros (veja mais no vídeo acima).
Ele será o primeiro brasileiro – e o primeiro cidadão de um país em desenvolvimento – a chefiar o órgão. Ao longo de seus mais de 100 anos, a instituição teve oito secretários-gerais: um austríaco, quatro franceses, um britânico, um alemão e um norte-americano.
Nascido em São Luís e filho de um bacharel em direito, Urquiza graduou-se no mesmo curso em Fortaleza e ingressou na PF em 2004 por concurso. Em 2007, de volta a São Luís, iniciou as atividades na corporação à frente da delegacia de crimes ambientais.
O interesse pela carreira dedicada à cooperação internacional surgiu quando Urquiza se deparou com crimes que envolviam a atuação de criminosos em vários países, como fraudes cibernéticas e lavagem de dinheiro.
Em 2015, o delegado assumiu o escritório nacional da Interpol no Brasil, em Brasília. Três anos depois, transferiu-se para a sede da organização na França, onde atuou como diretor-adjunto para comunidades vulneráveis e diretor de combate ao crime organizado na Secretaria-geral. Ao retornar ao Brasil, em 2021, voltou a trabalhar com cooperação internacional na PF e foi eleito vice-presidente das Américas do Comitê Executivo da Interpol, cargo que ocupa até hoje.
“E essa candidatura que ocorreu em seguida [para secretário-geral] foi uma decorrência natural desse processo”, afirmou Urquiza, em entrevista por videochamada ao g1.
O nome de Urquiza foi indicado pelo Comitê Executivo da Interpol. Uma vez no cargo, ele irá se mudar com a família para Lyon, na França, onde fica a sede da instituição.
Urquiza diz que terá como prioridade combater, em escala global, o abuso infantil on-line e levar, aos países em desenvolvimento, novas tecnologias de combate ao crime. “Um dos temas que mais tem se destacado é justamente a exploração sexual de crianças através da internet. E isso exige uma resposta global”, afirmou.
Além disso, acredita que a experiência da PF o levará a melhorar a eficiência da gestão da organização.
“A Polícia Federal consegue alcançar muito com poucos recursos. É um nível de eficiência acima da média, e o comprometimento dos profissionais também é bem acima da média.”
Casado e pai de dois filhos, Urquiza mantém discrição quanto à vida pessoal e se esquiva até mesmo de responder quais livros está lendo.
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Leia, abaixo, os principais trechos da conversa (as perguntas e respostas foram editadas para garantir clareza):
g1: Tem algo do trabalho da PF que o senhor queira levar para a Interpol?
Valdecy Urquiza: Eu acredito que a PF tenha um modelo de gestão muito bem constituído, né? Tem uma gestão de excelência com um trabalho muito eficiente nessa área. Com poucos recursos, a PF consegue alcançar muito. É um nível de eficiência acima da média, de comprometimento dos profissionais também acima da média. Acredito que isso é algo que pode ser levado como experiência também: o modelo de gestão da própria PF.
É evidente que a Interpol, como organismo Internacional, possui nuances diferentes e precisa contemplar perspectivas diferentes do mundo. E o grande objetivo é tentar identificar aquilo que cada um de seus países membros tem de referência que possa ser, então, replicado na organização.
g1: Que tipo de rede criminosa ambiental mais preocupa organização? E quais são as frentes de atuação para combater esses criminosos?
Valdecy Urquiza: O crime ambiental é um tema que está na pauta de todos os países membros da organização. A Interpol possui uma estrutura própria para lidar com esse tipo de delito. O que se tem visto ao longo dos anos é um caráter mais transnacional. Crimes que, antigamente, eram vistos e combatidos, de forma isolada, por cada país passam a ter esse elemento de transnacionalidade.
Se você combate esse delito em um país só, isoladamente, essas organizações [criminosas] facilmente migram para outros países. E, enquanto muitas vezes o delito é praticado em um país, o produto é destinado a países localizados em outras regiões do globo. Se você não atuar com os países dessas outras regiões, não vai permitir um alcance completo dessa organização criminosa.
g1: Quais são os principais delitos nessa área? Desmatamento?
Valdecy Urquiza: Temos visto muito a mineração ilegal, o desmatamento, a exploração da fauna silvestre e delitos que atingem muito, por exemplo, a América do Sul. Nesse caso, é um tipo de atividade com o qual a PF pode contribuir muito também, com a expertise.
g1: Como a Interpol atua contra redes transnacionais de fake news?
Valdecy Urquiza: São os delitos típicos transnacionais. E, de fato, a criminalidade cibernética é um delito clássico que envolve e impacta diversos países. Às vezes, envolve organizações criminosas baseadas em diversos países.
A Interpol tem procurado contribuir nessa atividade, apoiando as polícias no combate aos crimes cibernéticos e a disseminação de informações falsas, principalmente, através do trabalho de inovação tecnológica e desenvolvimento de ferramentas de trabalho que permitam as polícias combaterem esse tipo de caso.
A Interpol desenvolveu, em 2014, um complexo global para inovação tecnológica, em Singapura, que reúne policiais de todo o mundo. Os países membros enviam policiais com conhecimento técnico de tecnologia e de combate a crimes cibernéticos, realizam parcerias com instituições de ensino de todo o mundo, porque isso propicia a pesquisa mais rápida por novas soluções, e parceria muito forte com instituições privadas.
O que se tem visto hoje, na atividade policial, é que os dados necessários para investigações estão com empresas privadas, com provedores de serviços de internet. E, aí, é essencial que se tenha uma parceria forte com instituições privadas que possam ajudar no desenvolvimento dessas ferramentas, no desenvolvimento dessas técnicas.
g1: Você tem visto impacto da inteligência artificial nos crimes? Como esse recurso pode ajudar a Interpol?
Valdecy Urquiza: É um binômio:
Realmente, novas tecnologias, como é o caso da inteligência artificial, são utilizadas por organizações criminosas para apoiar no cometimento de crimes. E, aí, tem um elemento muito importante para as polícias, que é desenvolver a sua capacidade de entender a tecnologia e de dar resposta a esse tipo de crime.
O segundo passo é como adotar essas tecnologias para o próprio uso policial. Isso também a Interpol tem por missão e procura desenvolver através de atividades de pesquisa.
g1: Qual que é hoje a principal preocupação da Interpol em relação à atuação do PCC?
Valdecy Urquiza: A Interpol trabalha com um foco muito grande no desmantelamento de organizações criminosas com atuação global. Então, é um trabalho realizado em apoio às atividades das polícias, principalmente quando envolve a necessidade de troca de informação, porque essas organizações têm atuado em mais de um país. Com todos esses grupos – não só aqueles baseados aqui na América do Sul –, a atuação é muito semelhante.
É um trabalho de identificação, de levantamento de dados e de compartilhar essas informações com as outras polícias de cada país, buscando sempre realizar esse trabalho de forma coordenada.
[O objetivo é] evitar o trabalho isolado, porque, se você atuar isoladamente, vai muitas vezes conseguir sucesso em atacar um pedaço de uma organização, e acaba por não conseguir um alcance na organização como um todo.
g1: Vocês já foram procurados para ajudar a localizar foragidos do 8 de janeiro [investigações apontam que há cerca de 180 alvos da Operação Lesa Pátria escondidos em outros países] ?
Valdecy Urquiza: Eu não tenho como manifestar em relação a nenhum caso concreto. Mas o que eu posso falar é que a Interpol tem por missão apoiar as polícias na localização de foragidos internacionais. Isso é uma missão institucional.
Existe um regramento próprio, que precisa ser respeitado, e esse trabalho é feito sempre por solicitação da polícia de um dos países membros. O trabalho envolve a disseminação das informações daqueles foragidos, um apoio na localização, através de atividades de pesquisa, de inteligência, e um apoio com a polícia do país de destino, onde aquele foragido eventualmente esteja localizado, para a prisão e eventual extradição.
Isso é o trabalho que foi, na verdade, a causa da criação da Interpol, em 1923, com o objetivo de apoiar os países na localização de foragidos internacionais.
g1: No ano passado, a Interpol lançou uma campanha para tentar resolver alguns casos arquivados de mortes de mulheres. Tem algum caso específico que o senhor tem vontade de resolver?
Valdecy Urquiza: Os crimes contra as comunidades vulneráveis estão muito fortes na pauta da organização e serão priorizados na minha futura gestão. Um dos temas que mais tem se destacado é justamente a exploração sexual de crianças através da internet. E isso exige uma resposta global, uma troca de informações global, e a Interpol está muito bem-posicionada para isso.
Você citou a investigação de crimes violentos contra mulheres. A Interpol tem buscado identificar casos antigos de crimes violentos e apoiar as polícias na identificação de possíveis autores ou vítimas. E é um tema que foi muito forte nos últimos dois anos dentro da organização.
A Interpol possui bancos de dados muito eficientes para esse tipo de trabalho. Possui um banco de dados biométrico, utilizado não apenas para as atividades de identificação de criminosos, mas também para temas relacionados a apoio humanitário – identificação de cadáveres, identificação de vítimas de desastres.
Tem também um banco de dados muito eficiente, que são as difusões amarelas, para localização de pessoas desaparecidas. É um trabalho feito diuturnamente, com uma equipe dedicada a atuar nesses casos, promovendo a difusão de informação e o trabalho de apoio na investigação em localização, especialmente de crianças.
Então, acredito que os instrumentos são valiosos, e a Interpol é uma organização que, se não existisse, precisaria ser criada urgentemente, porque não há como se falar hoje no combate à criminalidade moderna sem a coordenação das forças policiais de todo mundo.
g1: O que vocês têm visto sobre redes transnacionais de exploração de crianças?
Valdecy Urquiza: Isso é um fenômeno, infelizmente, global, que tem atingido todos os países. Exige, de fato, uma atuação coordenada, que preveja a capacitação das polícias para atuar nesse tipo de delito.
Em muitos desses casos, o que se vê é que a vítima está localizada em um país, mas às vezes quem a explora pode estar localizado num segundo país. E esse material é comercializado e consumido num terceiro país. Então, se você foca a investigação em apenas um desses elementos, não consegue combater o fenômeno como um todo. É necessária uma atuação coordenada e, de fato, global.
g1: Que marca o senhor quer deixar ao final de sua gestão à frente da Interpol?
Valdecy Urquiza: Uma gestão de muita eficiência. Queremos que a organização se modernize, que entregue ainda com mais qualidade, com mais celeridade e que seja uma organização reconhecida pelas polícias de todo mundo, como um centro de excelência na atividade policial, que ela de fato seja o parceiro preferencial das polícias do mundo todo.
Precisamos investir muito em adoção de novas tecnologias dentro da própria organização, impulsionar ainda mais a atividade de inovação tecnológica de forma que a gente consiga ofertar, oferecer mais ferramentas aos países, especialmente àqueles em desenvolvimento, que têm sofrido muito com a atuação do crime organizado e que precisam da Interpol.
Então, se a gente tiver sucesso em conseguir levar a tecnologia e a capacitação às polícias de todo o mundo, especialmente aquelas dos países em desenvolvimento, tenho certeza de que vai ser um grande resultado para toda a comunidade policial internacional.
Valdecy Urquiza durante entrevista, em 5 de fevereiro de 2024
Adriano Machado/Reuters